A síndrome hepatorrenal (SHR) é uma das complicações mais graves da cirrose hepática descompensada, com elevada mortalidade e impacto direto sobre decisões terapêuticas como uso de vasoconstritores, diálise e indicação de transplante hepático. Tradicionalmente dividida entre os tipos 1 e 2, a síndrome vinha sendo manejada com base em critérios diagnósticos rígidos e, muitas vezes, pouco alinhados à prática clínica real.
Em julho de 2024, um novo consenso internacional foi publicado, propondo mudanças significativas na definição, na classificação e no tratamento da SHR. As novas diretrizes eliminam a distinção entre tipo 1 e tipo 2, introduzem três novas formas de apresentação com base na lesão renal (AKI, AKD e CKD) e priorizam a avaliação do estado volêmico como elemento central para o diagnóstico e conduta.
Neste artigo, você encontrará um resumo objetivo e atualizado sobre o novo consenso, com foco nos principais pontos que impactam a prática clínica e as provas de residência médica. Vamos revisar os critérios diagnósticos revisados, o papel da albumina, o uso racional de vasoconstritores como a terlipressina e os novos parâmetros para indicar diálise ou cuidados paliativos.
Seja para aplicar na beira do leito ou para acertar questões de alto nível nas provas, entender o que mudou na abordagem da síndrome hepatorrenal é essencial em 2024.
O que é a síndrome hepatorrenal?
A síndrome hepatorrenal (SHR) é uma forma específica de insuficiência renal funcional que ocorre em pacientes com cirrose avançada e ascite, em geral no contexto de uma descompensação hepática importante. Trata-se de um quadro caracterizado por vasodilatação esplâncnica intensa e vasoconstrição renal, levando à redução da perfusão renal sem lesão estrutural evidente nos rins.
A fisiopatologia clássica envolve a ativação de mecanismos vasoconstritores sistêmicos (como o sistema renina-angiotensina-aldosterona, sistema simpático e liberação de vasopressina), resultando em hipoperfusão renal persistente, mesmo com volume circulante aparente normal ou até aumentado.
Tradicionalmente, a SHR era dividida em dois subtipos:
- Tipo 1: instalação rápida e progressiva da disfunção renal, com duplicação da creatinina em menos de duas semanas.
- Tipo 2: evolução mais lenta, geralmente associada à ascite refratária.
Contudo, essa classificação demonstrou baixa utilidade prática, sem impacto prognóstico relevante e com limitações em relação à correlação fisiopatológica. Isso motivou sua substituição no novo consenso de 2024, que propõe uma abordagem mais integrativa e funcional, com foco na avaliação da injúria renal aguda e suas possíveis evoluções.
A SHR, apesar de sua natureza funcional, apresenta alto potencial de progressão para lesão renal estrutural, especialmente quando o diagnóstico é tardio ou o tratamento é adiado. Por isso, o reconhecimento precoce e a intervenção adequada são determinantes para o desfecho clínico, especialmente nos pacientes elegíveis para transplante hepático.
O que mudou com o novo consenso de 2024
Em julho de 2024, foi publicado um novo consenso internacional que reformulou profundamente a abordagem da síndrome hepatorrenal. As principais mudanças envolveram a classificação do quadro renal, a forma de avaliar o estado volêmico, os critérios diagnósticos e a conduta terapêutica inicial. Essas alterações buscam alinhar a prática clínica ao raciocínio fisiopatológico atual e melhorar o prognóstico dos pacientes com cirrose e disfunção renal.
1. Fim da divisão em tipo 1 e tipo 2
A distinção entre SHR tipo 1 (rápida) e tipo 2 (lenta) foi abandonada. Esses termos apresentavam pouco valor prognóstico e não alteravam condutas terapêuticas. Além disso, a nomenclatura dificultava a padronização da abordagem em diferentes contextos clínicos.
2. Nova classificação: AKI, AKD e CKD
O novo consenso propôs uma categorização mais útil e coerente com a literatura nefrológica:
- Hepatorrenal com lesão renal aguda (AKI – Acute Kidney Injury): disfunção renal com menos de 7 dias de evolução, compatível com o critério do KDIGO.
- Hepatorrenal com dano renal agudo (AKD – Acute Kidney Damage): persistência da disfunção por até 90 dias, indicando possível transição entre injúria aguda e doença renal crônica.
- Hepatorrenal com doença renal crônica (CKD – Chronic Kidney Disease): disfunção renal com mais de 90 dias de duração.
Essa nova abordagem alinha a terminologia hepatorrenal com a prática nefrológica moderna, e permite estratificar melhor os pacientes, estimando risco de recuperação ou necessidade de terapia renal substitutiva.
3. Ênfase na avaliação volêmica
Um dos pontos centrais do novo consenso é a revalorização da avaliação clínica do estado volêmico. A antiga recomendação de administrar 1 g/kg de albumina por 48 horas de forma indiscriminada foi considerada obsoleta. Agora, a conduta depende da volemia observada:
- Hipovolemia evidente: expansão com cristaloide (ex: Ringer lactato).
- Volemia incerta: expansão com cristaloide ou albumina (1–1,5 g/kg).
- Hipervolemia ou euvolemia clínica: evitar expansão; contraindicação ao uso empírico de albumina.
A avaliação da volemia deixa de ser uma etapa automática e passa a ser um elemento central na tomada de decisão clínica. Essa mudança visa evitar atrasos no início do tratamento efetivo (como o uso de vasoconstritores), reduzir custos com albumina e minimizar efeitos adversos da hipervolemia.
Avaliação do estado volêmico: novo foco do diagnóstico
A principal mudança prática introduzida pelo novo consenso de 2024 é a centralidade da avaliação volêmica na definição e manejo da síndrome hepatorrenal (SHR). Antes, a conduta padrão consistia em infundir albumina universalmente para tentar descartar hipovolemia e, somente após 48 horas sem resposta, considerar SHR. Essa estratégia, além de custosa e frequentemente inviável na rede pública, era pouco precisa e atrasava o início do tratamento efetivo.
Agora, o algoritmo clínico exige que o médico avalie cuidadosamente a volemia do paciente antes de decidir pelo uso de expansores, seja albumina ou cristaloide.
Novas diretrizes de expansão volêmica:
Status volêmico clínico | Conduta indicada |
---|---|
Hipovolemia evidente | Expansão com cristaloide isotônico |
Volemia incerta | Teste com cristaloide ou albumina (1–1,5 g/kg) |
Euvolemia ou hipervolemia | Não realizar expansão com cristaloide nem albumina |
A resposta à expansão é então utilizada como critério funcional para auxiliar no diagnóstico. Se não houver melhora do débito urinário ou da creatinina após uma expansão volêmica adequada (em até 24 horas), considera-se SHR como o diagnóstico mais provável, desde que não haja outra causa evidente.
Racional clínico por trás da mudança:
- Evitar atraso no início dos vasoconstritores: estudos mostram que o tratamento iniciado nas primeiras 24 horas tem maior impacto na reversão da disfunção renal.
- Racionalização do uso de albumina: trata-se de um recurso caro, escasso em muitos serviços, e que pode provocar hipervolemia se usado indiscriminadamente.
- Maior adesão à realidade da prática clínica: a nova abordagem aproxima-se da lógica aplicada à sepse e injúrias renais em outras situações críticas.
A avaliação volêmica deixou de ser uma etapa secundária e passou a ser determinante para definir se o paciente deve receber volume, qual tipo, e se há indicação de iniciar vasoconstritores imediatamente.
Critérios diagnósticos atualizados
O novo consenso de 2024 promoveu uma importante simplificação e padronização dos critérios diagnósticos para a síndrome hepatorrenal (SHR), abandonando antigas exigências excludentes e adotando uma abordagem mais funcional, voltada à precocidade diagnóstica e início rápido do tratamento.
Principais mudanças:
1. Adoção do critério KDIGO para injúria renal aguda (AKI)
A nova definição de SHR passa a utilizar os mesmos critérios do KDIGO para caracterizar injúria renal aguda (IRA), unificando a terminologia e facilitando a integração com outras diretrizes clínicas. Dessa forma, considera-se AKI:
- Aumento da creatinina sérica ≥ 0,3 mg/dL em 48 horas
ou - Aumento ≥ 50% em relação ao valor basal nos últimos 7 dias
Com isso, os profissionais de saúde não precisam mais memorizar uma definição específica para SHR — basta aplicar os mesmos parâmetros utilizados para outras causas de IRA.
2. Exclusão de critérios negativos rígidos
Anteriormente, para diagnosticar SHR, era necessário excluir de forma objetiva várias outras causas de IRA, incluindo:
- Proteinúria significativa
- Hematúria
- Anormalidades na ultrassonografia renal
- Uso recente de nefrotóxicos
- Presença de choque
Essas exigências foram abandonadas, por dificultarem o diagnóstico precoce e por não refletirem a complexidade dos pacientes com cirrose avançada, que frequentemente apresentam comorbidades.
3. Novo critério central: ausência de evidência inequívoca de outra etiologia
O novo diagnóstico de SHR exige apenas que não exista uma causa alternativa evidente e robusta para a lesão renal. Ou seja:
- Se o paciente tem cirrose com ascite, elevação da creatinina conforme o KDIGO e não há um diagnóstico claramente mais provável (como rabdomiólise, choque séptico, uso recente de contraste, etc.), considera-se SHR como o diagnóstico funcional.
Essa mudança visa aumentar a sensibilidade diagnóstica e acelerar o início da terapia com vasoconstritores, ponto essencial para melhora de desfecho.
Exemplo prático:
Um paciente cirrótico com ascite, creatinina de 2,1 mg/dL (basal 1,1), pressão arterial média de 62 mmHg, sem infecção ou uso recente de nefrotóxicos, após expansão volêmica adequada, mantém função renal estável. Neste cenário, mesmo sem ultrassom renal ou proteinúria, é possível fechar o diagnóstico funcional de SHR e iniciar o tratamento.
Tratamento atual da síndrome hepatorrenal
O tratamento da síndrome hepatorrenal (SHR) também foi profundamente revisto no novo consenso de 2024, com destaque para a início precoce da terapia vasoconstritora, o uso racional da albumina e a valorização do estado volêmico. O objetivo das novas diretrizes é garantir resposta terapêutica rápida e melhor prognóstico renal, especialmente nos pacientes candidatos a transplante hepático.
1. Início precoce da terapia
Estudos demonstram que iniciar o tratamento nas primeiras 24 horas após a detecção da injúria renal está associado a melhores desfechos clínicos. Com o novo modelo diagnóstico, não é mais necessário aguardar 48 horas de infusão de albumina para considerar SHR e começar a intervenção.
2. Vasoconstritores
A base da terapia farmacológica é o uso de vasoconstritores para reverter a vasodilatação esplâncnica e restaurar a perfusão renal. O consenso atual prioriza:
a. Terlipressina (preferencial)
- Agente de primeira escolha quando disponível
- Pode ser administrada por via intravenosa contínua
- Dose inicial: 0,5 a 2 mg a cada 4 a 6 horas (ou infusão contínua ajustável)
- Avaliar resposta com redução ≥ 25% na creatinina após 24 a 48 horas
- Ajustar dose conforme tolerância hemodinâmica e resposta clínica
b. Noradrenalina (alternativa válida)
- Principal opção nos locais onde a terlipressina não está disponível
- Administração em ambiente de terapia intensiva
- Meta: aumentar a pressão arterial média (PAM) em 10 a 15 mmHg
- Requer controle rigoroso da volemia para evitar sobrecarga
Ambas as drogas são eficazes, mas a terlipressina tem maior nível de evidência para melhora da função renal e é preferida sempre que possível, principalmente por permitir administração fora da UTI (via periférica em alguns casos).
3. Albumina: papel complementar
O uso de albumina permanece indicado, mas de forma individualizada, conforme o estado volêmico do paciente. A recomendação atual é:
- 20 a 40 g/dia de albumina a 20–25%, desde que não haja hipervolemia
- Suspender albumina em caso de sinais clínicos de sobrecarga
- Monitorar volemia de forma ativa durante todo o tratamento
A albumina, nesse contexto, atua como coadjuvante para estabilizar a perfusão renal, mas não é mais um pré-requisito diagnóstico universal.
4. Critérios de refratariedade ao tratamento
Se não houver melhora significativa após 48 a 72 horas com dose máxima de vasoconstritores, considera-se que o paciente apresenta SHR refratária. Nesses casos, devem ser consideradas:
- Terapia renal substitutiva (diálise) como ponte para transplante
- Avaliação para cuidados paliativos, especialmente em pacientes não elegíveis para transplante
Quando indicar diálise ou cuidados paliativos
Nem todos os pacientes com síndrome hepatorrenal (SHR) respondem ao tratamento com vasoconstritores e albumina. Diante da ausência de resposta clínica, o novo consenso de 2024 propõe critérios objetivos para guiar a decisão entre iniciar terapia renal substitutiva (TRS) ou considerar cuidados paliativos, especialmente em pacientes com cirrose avançada e sem perspectiva de transplante.
1. Indicação de diálise
A diálise deve ser considerada nos seguintes contextos:
- Refratariedade ao tratamento clínico após 48–72 horas de dose máxima de vasoconstritor
- Complicações clássicas da uremia, como encefalopatia refratária, hipercalemia grave, acidose metabólica incontrolável ou sobrecarga volêmica não responsiva
- Pacientes com indicação e perspectiva de transplante hepático
A diálise, neste cenário, atua como ponte para o transplante hepático, não sendo terapêutica definitiva. O paciente precisa ter perfil clínico e funcional adequado para ser incluído em lista de transplante, pois a SHR é uma síndrome secundária à falência hepática — e sem correção da causa de base, não há recuperação renal sustentada.
2. Indicação de cuidados paliativos
Quando o paciente apresenta SHR refratária e não é candidato a transplante hepático, a indicação de diálise deve ser cuidadosamente reavaliada. Nesses casos, a TRS tende a oferecer baixo benefício clínico, alto custo e risco de prolongar o sofrimento em fases terminais da doença.
Critérios que orientam a opção por cuidados paliativos:
- Neoplasia ativa sem perspectiva curativa
- Baixa performance funcional (ex: ECOG ≥ 3)
- Doenças associadas com expectativa de vida limitada
- Contraindicações clínicas ou sociais ao transplante
O objetivo passa a ser o controle de sintomas, com foco em conforto, suporte emocional e acolhimento do paciente e da família. A SHR, nesses casos, é considerada parte do processo terminal da cirrose.
Reflexão prática
O novo consenso ajuda a diferenciar situações em que o rim “parou” por um problema reversível (e, portanto, merece tratamento ativo) daquelas em que há falência multissistêmica terminal, onde intervenções agressivas podem ser fúteis.
O que esperar nas provas de residência médica
A síndrome hepatorrenal (SHR) é um tema frequente nas provas de residência, especialmente nas áreas de clínica médica, nefrologia, medicina de urgência e gastroenterologia. Com a publicação do novo consenso em 2024, é altamente provável que as próximas provas passem a cobrar as mudanças conceituais e práticas mais relevantes.
Pontos com alta chance de cobrança:
- Fim das classificações tipo 1 e tipo 2
- Questões que comparam abordagens antigas e novas
- Aplicação prática da nova terminologia (AKI, AKD, CKD)
- Critérios diagnósticos atualizados
- Uso do critério do KDIGO para definição de injúria renal
- Exclusão de critérios negativos obrigatórios (ex: proteinúria, ultrassonografia normal)
- Nova lógica: ausência de evidência inequívoca de outra causa
- Avaliação volêmica como eixo diagnóstico
- Diferença entre hipovolemia, volemia incerta e hipervolemia
- Papel limitado e racional da albumina
- Substituição do protocolo universal de 48h de albumina
- Tratamento precoce com vasoconstritores
- Terlipressina como primeira escolha
- Noradrenalina como alternativa válida
- Importância do início nas primeiras 24 horas
- Indicação de diálise ou cuidados paliativos
- Papel da TRS como ponte para transplante
- Reconhecimento de SHR refratária e limites da terapia invasiva
Dicas de preparação:
- Atualize seus resumos e mapas mentais: muitos materiais ainda trazem o modelo antigo (tipo 1 e 2).
- Treine questões com cenários clínicos realistas, onde a análise da volemia e a ausência de etiologia alternativa são chaves para o diagnóstico.
- Foque na conduta prática atualizada, com base em protocolos adaptados à realidade do pronto-socorro e enfermaria.
Dominar o novo consenso da SHR não é apenas diferencial competitivo para a prova — é também uma forma de aplicar condutas mais eficazes e seguras no cuidado ao paciente cirrótico com disfunção renal.
Conclusão
O novo consenso internacional sobre síndrome hepatorrenal, publicado em 2024, marca uma virada na forma como essa condição é reconhecida, diagnosticada e tratada. A extinção das antigas classificações tipo 1 e tipo 2, a adoção dos critérios do KDIGO, a centralização da avaliação volêmica e o uso mais racional da albumina tornam a abordagem mais realista, ágil e eficaz.
Além disso, a ênfase no início precoce dos vasoconstritores, o reconhecimento de cenários refratários, e a definição clara de quando considerar diálise ou cuidados paliativos tornam esse novo modelo clínico mais aplicável à prática hospitalar cotidiana.
Para quem se prepara para a residência médica, entender essas mudanças é mais do que recomendável — é necessário. Questões envolvendo SHR devem evoluir a partir de agora, exigindo do candidato atualização e raciocínio clínico apurado.
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