As doenças de depósito hepático são distúrbios metabólicos caracterizados pelo acúmulo anormal de minerais, principalmente no fígado, resultando em danos progressivos ao tecido hepático e a outros sistemas. Entre essas condições, destacam-se a hemocromatose e a doença de Wilson, que envolvem, respectivamente, o acúmulo excessivo de ferro e de cobre. Ambas podem levar a manifestações clínicas similares, como disfunção hepática, mas possuem mecanismos patofisiológicos distintos e exigem abordagens terapêuticas diferentes.
O diagnóstico precoce de doenças de depósito hepático é crucial, pois essas condições frequentemente têm evolução insidiosa e manifestações clínicas que surgem apenas em estágios avançados. A identificação precoce permite intervenção terapêutica antes do desenvolvimento de complicações irreversíveis, como a cirrose hepática, insuficiência hepática e manifestações neurológicas graves. Em especial, na hemocromatose, o tratamento adequado pode prevenir a progressão para cirrose e insuficiência hepática, enquanto na doença de Wilson, o diagnóstico precoce impede danos neurológicos permanentes.
O que é a hemocromatose?
A hemocromatose é uma condição caracterizada pelo acúmulo excessivo de ferro nos tecidos do corpo, particularmente no fígado, pâncreas, coração e pele. Esse depósito excessivo é tóxico para as células, gerando danos oxidativos que levam à disfunção e fibrose hepática progressiva, distúrbios endócrinos e envolvimento cardíaco. Na hemocromatose primária, o acúmulo de ferro é devido a uma mutação no gene HFE, que regula a absorção intestinal de ferro, resultando em uma absorção excessiva do mineral. Essa sobrecarga ocorre independentemente da ingestão de ferro, o que a diferencia de outras condições relacionadas ao acúmulo de ferro.
Tipos de hemocromatose
- Hemocromatose primária: mutação do gene HFE (hereditária)
É a forma hereditária da doença, causada por mutações no gene HFE (localizado no cromossomo 6), o que leva a uma regulação inadequada da absorção intestinal de ferro. A mutação mais comum é a C282Y. A hemocromatose primária afeta predominantemente homens, com manifestação clínica geralmente após a quarta década de vida.
- Hemocromatose secundária: associada a múltiplas transfusões ou hemólise crônica
Está associada a sobrecarga de ferro secundária, geralmente devido a transfusões sanguíneas múltiplas ou a doenças hemolíticas crônicas, como a talassemia. Nesses casos, a sobrecarga de ferro é resultado da destruição acelerada de hemácias, que libera ferro em excesso, excedendo a capacidade do organismo de excretá-lo.
Quadro clínico da hemocromatose
- Tríade clássica: diabetes mellitus + hiperpigmentação da pele + cirrose
O quadro clínico clássico da hemocromatose é frequentemente descrito pela tríade: diabetes mellitus, hiperpigmentação da pele e cirrose hepática.
- Outros sintomas:
A hiperpigmentação ocorre devido ao depósito de ferro na pele e nos tecidos subcutâneos, levando a uma coloração bronzeada ou acastanhada, muitas vezes chamada de “bronzeamento” ou “melasma”. A hepatomegalia é um sinal precoce da doença, acompanhada de elevação das transaminases (TGO e TGP), com o risco de progressão para cirrose. A deposição de ferro no pâncreas pode causar diabetes mellitus por danos às células beta pancreáticas, enquanto o envolvimento hormonal pode levar a hipogonadismo, disfunções da tireoide e problemas cardíacos como cardiomiopatia dilatada e arritmias.
Diagnóstico da hemocromatose
O diagnóstico laboratorial da hemocromatose é confirmado pela avaliação do perfil de ferro, que geralmente demonstra:
- Ferro sérico elevado
- Ferritina elevada
- Saturação de transferrina > 45%
Além disso, a ressonância magnética (RM) do fígado pode ser utilizada para quantificar o acúmulo de ferro hepático, sendo considerada uma ferramenta não invasiva eficaz para a avaliação da sobrecarga de ferro. A elastografia hepática pode ser utilizada para avaliar a presença de fibrose hepática associada ao acúmulo de ferro.
Tratamento da hemocromatose
- Sangria terapêutica (flebotomia): retirada de 500 mL de sangue por semana
- Meta laboratorial: ferritina < 50 ng/mL e saturação de ferro < 30%
O tratamento da hemocromatose envolve principalmente a sangria terapêutica (ou flebotomia), que visa reduzir os níveis de ferro no organismo. A retirada de até 500 mL de sangue por semana permite a diminuição da ferritina e a normalização dos níveis de ferro no sangue, com a meta de alcançar uma ferritina < 50 ng/mL e saturação de ferro < 30%.
Além disso, os pacientes devem ser orientados a evitar alimentos ricos em ferro e vitamina C, que aumentam a absorção intestinal do ferro.
- Transplante hepático para casos avançados com insuficiência hepática
Em casos avançados de cirrose hepática, o transplante hepático pode ser indicado, desde que o controle da sobrecarga de ferro tenha sido realizado de maneira adequada.
O que é Doença de Wilson?
A doença de Wilson é um distúrbio raro e autossômico recessivo do metabolismo do cobre, resultante de mutações no gene ATP7B, que codifica uma ATPase responsável pelo transporte hepático de cobre. Essa falha genética impede a excreção adequada de cobre através da bile, levando ao acúmulo desse metal no fígado, nos rins, no sistema nervoso central e nos olhos. O excesso de cobre é tóxico, causando danos oxidativos aos tecidos e contribuindo para as manifestações clínicas típicas da doença, como disfunção hepática e neurológica. Apesar de ocorrer em qualquer idade, há um pico de incidência entre 8 e 20 anos.
Disfunção hepática progressiva
O quadro clínico é inicialmente caracterizado por disfunção hepática, com hepatomegalia, elevação das transaminases e icterícia. O acometimento hepático pode evoluir para hepatite fulminante ou cirrose descompensada.
- Manifestações neurológicas e psiquiátricas
Além disso, os pacientes podem desenvolver sintomas neurológicos, como tremores, distúrbios de marcha, distonias e dificuldade de deglutição. Alterações cognitivas, como depressão, isolamento social e déficit de memória, também são comuns.
- Aneis de Kayser-Fleischer
Um achado característico é a presença dos aneis de Kayser-Fleischer, depósitos de cobre na córnea, visíveis na lâmpada de fenda, que apesar de não ser patognomônico da doença de Wilson, ocorrem em 90% dos casos com envolvimento neurológico.
Diagnóstico da doença de Wilson
Os principais exames laboratoriais incluem:
- Ceruloplasmina sérica reduzida (a principal proteína transportadora de cobre no sangue).
- Cobre sérico reduzido
- Cobre urinário elevado
A biópsia hepática pode ser realizada para confirmar o acúmulo excessivo de cobre, especialmente em pacientes com resultados laboratoriais ambíguos. Além disso, imagens do sistema nervoso central, como TC ou RM de crânio, podem mostrar atrofia de gânglios da base, especialmente no putâmen, região típica de depósito de cobre.
Tratamento da doença de Wilson
O tratamento da doença de Wilson visa remover o excesso de cobre do organismo e prevenir a reincorporação do metal. O uso de quelantes de cobre, como penicilamina ou dimercaptopropanol (BAL), é fundamental para reduzir o acúmulo de cobre nos tecidos. O acetato de zinco também pode ser utilizado como uma terapia auxiliar, uma vez que ele inibe a absorção intestinal de cobre.
Nos casos mais graves, como a hepatite fulminante ou cirrose descompensada, o transplante hepático pode ser indicado, especialmente em pacientes jovens com comprometimento hepático severo.
Comparação entre Hemocromatose e Doença de Wilson
Característica | Hemocromatose | Doença de Wilson |
Mineral depositado | Ferro | Cobre |
Transaminases | Elevadas | Elevadas |
Ferro sérico e ferritina | Elevados | Normais |
Ceruloplasmina sérica | Nomal | Reduzida |
Sinais clássicos | Diabetes mellitus, hiperpigmentação da pele e cirrose | Aneis de Kayser-Fleischer, distúrbios neurológicos |
Tratamento | Sangria terapêutica (Flebotomia) | Quelantes de cobre e acetato de zinco |